O mito do príncipe
encantado ainda sobrevive?
Certo dia, fui
visitar uma senhora com uma amiga e seu avô. A visita coincidiu com o
primeiro aniversário da morte do marido da nossa anfitriã. Ela tinha
sido casada por 65 anos. Iniciando os últimos 20 anos do casamento, seu marido
adoeceu. Ela cuidou dele. E o que me impressionou é que sua fala era de
saudade. Não de alívio por ficar livre de ter que cuidar de um doente. Havia em
seus olhos azuis uma dor, que ela mesma definiu como infinita. A lembrança do
seu amado era certamente a melhor que ela tinha. Então, resignada, agradecia a
Deus por ter tido aquele homem em sua vida. Minha amiga, então, me disse: “É
possível um relacionamento dar certo”.
Sim, é possível.
Mas será que estamos dispostos a
investir em uma relação amorosa?
O mito do príncipe encantado não está
mais na moda entre as mulheres, porém desconfio que elas continuem acreditando
nele. Falando numa linguagem psicanalítica, trazem esse mito no
inconsciente.
As mulheres, hoje em dia, querem
homens “estudados” (com formação acadêmica), sarados (de preferência com a
barriga “tanquinho”), que tenham dinheiro para pagar as contas (um grupo
pequeno concorda em dividir, embora praticamente todo nosso discurso seja
feminista), que sejam empreendedores, parceiros na cozinha, na arrumação da
casa, que sexualmente tenham desempenho cem por cento, que sejam amigos, companheiros,
cúmplices e, sobretudo, que sejam capazes que aguentar a TPM (Tendência Para
Matar? ou Manipular?)
Você, mulher moderna, espera esse
homem.
Quem não espera?
Mas a vida é feita de realidade.
E, de acordo com Fernando Pessoa, “a
realidade é sempre mais ou menos”. Aquela senhora que viveu 65 anos em um
relacionamento se deu conta da realidade. E a realidade é que vamos
envelhecendo, o mercado não tem espaço para todos, a política econômica afeta
nossa vida, a barriga cresce, a celulite aparece, o pinto cai.
Dizem que depois dos quarenta a vida
começa. Eu me pergunto: começa para o que e para quem? O corpo já demonstra
sinais do tempo que se impõe tanto quanto a realidade. Dores que nunca
sentíamos passamos a sentir, as rugas começam a aparecer. E as mulheres em
nossa cultura que o digam, enquanto os homens são mais charmosos aos 50, a
sensação que tenho é que as mulheres já estão com suas datas de validade
vencidas (meu irmão mais novo sempre me lembra isso, será por quê? Faltam ainda
7 anos para eu chegar aos 50). Você também tem essa impressão?
Mas a realidade é que se impõe. E o
príncipe encantado daquela senhora tinha suas limitações. Durante vinte anos
ele necessitou ser cuidado.
De verdade, quem hoje em sã
consciência deseja viver uma história de amor assim?
Achamos linda essa história e tantas
outras, até suspiramos ao ouvi-las, mas o homem que queremos tem que ter tantas
qualidades...e, como diz uma amiga, deveria ter como montar esse homem. O meu
ficaria com a inteligência do Leandro Karnal (Historiador, Doutor formado na
USP), com a estabilidade de um funcionário público com um salário acima de
10.000 reais, e o corpo do Henry Cavill. E o seu?
Deixa eu voltar para a
realidade.
As pessoas são pessoas. O que quer
dizer que nada pode ser perfeito. As pessoas sofrem dores físicas e emocionais,
envelhecem, ficam desempregadas.
A realidade é que lidar com gente é sofrer de
alguma maneira; mas, mais do que isso, con-viver com gente é sofrer, com
certeza. Talvez por isso escutemos tanto que é melhor cuidar de cães, gatos
etc. Com o que eu, enquanto psicóloga, discordo completamente.
Por isso, eis a questão: Você quer
mesmo um relacionamento?
E mais: nesses dias em que o
individualismo triunfa, quem quer e quem pode investir em um amor que dure a
vida inteira?
Acreditamos que a vida sem compromisso é boa. Por
vezes, pessoas casadas suspiram ao ver os solteiros com sua possibilidade de ir
e vir; por vezes, os solteiros suspiram por alguém a quem se prender. Eterna
insatisfação.
Entretanto, a verdade é que, para
construir qualquer relacionamento, é necessário investimento. Significa ajustar
agendas, gastar tempo em conhecer o outro, sua família, seus amigos, seu mundo,
significa encontrar o caminho da flexibilidade, que não é fazer tudo o que o
outro quer, mas é fazer também o que o outro quer; significa centrar-se no que
a pessoa tem de valor, não desconsiderando suas dificuldades, sejam elas quais
forem, mas olhando-a como pessoa, que como você e eu sofre as dores humanas. E
pessoas são sempre problemáticas, em alguma área sempre vão precisar de reforma
(Freud já dizia “todos são neuróticos”). Investimento significa abrir mão da
idealização para a realidade. Significa ver o outro em sua necessidade.
Relacionar-se é desenvolver a capacidade de se dar ao outro.
Então, esse papo de que não é
necessário deixar de ser você por causa do outro guarda certos limites. Devemos
guardar nossa essência e não negociá-la jamais, mas para construir uma história
de amor é preciso sacrifício.
Por essas e outras, afirmo:
relacionamento dá trabalho. É isso mesmo que você quer?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pelo seu comentário